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Em
Combate |
Em Combate
Nas noites chuvosas, ouvíamos discos de Glenn Miller e fazíamos
sanduíches de queijo quente no fogão a coque da barraca do
líder de vôo. Se o dia de trabalho tivesse sido bom, aquecíamos
um atiçador até ficar em brasa e marcávamos outra
suástica na porta dianteira. Cada suástica representava uma
vitória em combate aéreo e, no final de meu tempo de serviço,
a porta exibia cinqüenta. Metade das vitórias de todo o esquadrão
se devia a quatro pessoas de nosso grupo. Durante a última semana
de novembro, tornei-me um duplo ás, com onze vitórias ao
derrubar quatro aviões alemães durante um histórico
combate aéreo — a maior vitória individual americana da guerra
aérea.
Andy liderava o esquadrão e eu
liderava uma das formações de quatro. Naquele dia, nossa
tarefa era escoltar caças Mustang que levavam uma bomba e um tanque
auxiliar sob as asas para atacar depósitos subterrâneos de
combustível, perto de Poznan, na Polônia. Fornecíamos
cobertura por cima, voando a 10.500 metros, enquanto os Mustang que levavam
bombas iam mais abaixo. O radar alemão nos tomou por uma esquadra
de pesados bombardeiros sem escolta e a Luftwaffe reuniu todos os caças
disponíveis no leste da Alemanha e na Polônia. Andy e eu fomos
os primeiros a vê-los chegar; a 80 quilômetros de distância
ou mais, eram uma nuvem escura que se movia em nossa direção.
"Santo Deus, deve haver 150 deles!", exclamou Andy. Não conseguíamos
acreditar em nossa sorte. Andy ordenou uma volta à esquerda que
me colocou na frente; livramo-nos de nossos tanques de asa e pusemos mãos
à obra bem na traseira daquele enorme bando de caças alemães.
Éramos dezesseis e eles, mais de
duzentos, mas, então, mais caças Mustang chegaram e se juntaram
a nós. Meu Deus, havia aviões voando para todos os lados.
Rapidamente, derrubei dois; um deles explodiu, mas o piloto do outro saltou
fora. Eu o vi saltar, mas ele se esqueceu de prender o arnês do pára-quedas,
que foi levado pelo vento, enquanto ele caiu, girando direto para o chão.
Até hoje ainda posso vê-lo caindo.
Um combate aéreo segue seu próprio relógio e não
tenho idéia de quanto tempo girei e fiz loopings no céu.
Elevei-me a 600 metros sobre o solo, com quatro vitórias. Ao voltar
para o alto, encontrei-me sozinho num céu vazio. Mas, até
onde podia ver, de Leipzig até o norte, o solo estava coberto de
destroços em chamas. Era uma visão pavorosa.
Descobrimos posteriormente que nem tínhamos atacado a força
principal: os alemães colocaram 750 caças contra o que pensavam
ser uma imensa frota de bombardeiros. Toparam com duzentos Mustang de três
diferentes grupos de caça e perderam 98 aeronaves. Nós perdemos
onze.
Subi até 10.000 metros e vi três manchinhas no céu,
mais adiante e ligeiramente mais acima. Ainda tinha bastante munição
e combustí-vel e acabava de me voltar em direção às
manchas quando ouvi uma voz familiar: "Bandido ao sul". Apenas um par de
olhos podia ter-me visto no momento em que comecei a fazer a volta. "Andy",
perguntei, "é você?" Era. E, loucos como éramos, voamos
rapidamente na direção um do outro, felizes da vida. Ele
derrubara três. Andy nos conduziu de volta para a base e aquele se
tornou um dos momentos divertidos de nossa amizade.
Encontramos ventos contrários incomumente fortes e, após
umas duas horas, Andy deduziu que estávamos sobre o canal da Mancha
e começou a descer. Nós o seguimos para dentro de uma compacta
camada de nuvens e nos encontramos diretamente acima das plataformas de
canhões antiaéreos das ilhas Frísias. O céu
estava negro com a fumaça da artilharia. E lá estávamos
nós, apenas 150 metros acima daqueles grandes canhões. Puxa,
como xingamos o pobre Andy. Na hora em que conseguimos aterrizar, suas
orelhas estavam roxas. E continuamos a xingá-lo por dias seguidos.
Que diabo, ainda não o deixei esquecer aquela.
Aquele dia foi a realização do sonho de todo piloto de caça.
No meio de um céu violento, eu sabia que era para aquilo que havia
nascido. É quase impossível explicar a sensação:
é como se eu e o Mustang fôssemos uma coisa só, como
se eu fosse uma extensão daquele maldito manete. Voamos naquela
coisa, sobre um fio fino e aguçado, sabendo que o piloto que vencesse
conhecia melhor o avião e tinha perícia para fazê-lo
trabalhar o melhor possível. Estávamos tão protegidos
lá dentro que o fazíamos voar até os limites de suas
especificações, onde o disparar de nossas metralhadoras poderia
fazê-los estolar. Sentíamos o motor em nossos ossos, sentíamos
quando diminuía as rotações em direção
a um estol, com o manete aberto, conseguindo uma máxima peformance
de manobra. Sabíamos quanto podíamos fechar uma curva antes
do Mustang saltar sobre nós, um castigo que recebíamos se
fizéssemos uma asneira. Potência máxima, sustentação
e maneabilidade eram alcançadas principalmente por instinto: conhecíamos
o nosso cavalo. A concentração era total; permanecíamos
totalmente ligados, ignorando a fadiga ou o medo, não permitindo
interferências em nossa mente. Lá em cima, combatendo, associamo-nos
a nós mesmos. Aquela pequena cabine apertada era exatamente o lugar
ao qual pertencíamos.
Luta-se abertamente, a toda velocidade. Por experiência, sabemos
de antemão quando vamos acertar. Uma vez que se ajusta a mira e
se começa a manobrar, aproximando-se do adversário, a gente
se torna um gato com um rato nas mãos. Você o aperta e não
há saída: tanto você como ele sabem que ele está
perdido. Você é um caçador seguro de si e seu dedo
no gatilho nunca treme. Você escolhe o ponto: ligeiramente abaixo,
para poder subir, comanda-o um pouco e evita ser atingido pelos pedaços
que voarem quando ele se desintegrar. Quando ele explode, é uma
bela e agradável visão. Não havia prazer em matar
alguém, mas uma verdadeira satisfação quando se superava
um piloto e se destruía sua aeronave. Essa era a disputa: habilidade
humana e desempenho da máquina. A gente sabia quando havia matado
um piloto na cabine pelo modo como o avião dele começava
a girar, direto para baixo. Então, nós o seguíamos
até as mais baixas altitudes, ligando a câmara para registrar
a explosão e documentar nossa vitória. A excitação
daqueles combates aéreos nunca diminuía. Para mim, o combate
permanece como a experiência fundamental de vôo.
Tática? Mantenha o sol às suas costas e o máximo de
vantagem possível na altitude; faça o inimigo sair do sol.
É claro que isso nem sempre é possível e, às
vezes, somos nós os forçados. Para cada ação,
há uma reação possível e, com a experiência,
aprendi a ser previdente e adivinhar os passos do inimigo. Eu sabia, por
exemplo, mesmo enquanto estava com vantagem, que ele provavelmente tentaria
se colocar em outro lugar, de modo que o conduzia um pouco; se estivesse
certo, o enganaria, e, se estivesse errado, tinha que voltar à tarefa
de pegá-lo. Mas, na verdade, minha maior vantagem tática
era a visão. Divisava o inimigo a longa distância, sabendo
que ele não podia me ver porque era para mim apenas uma mancha pálida
no céu. As vezes, nem chegava a me ver quando eu avançava;
ou, quando finalmente me via, já era muito tarde.
Num céu repleto de aviões, era preciso olhar para todos os
lados ao mesmo tempo, para não ser derrubado ou colidir com alguém.
A melhor tática de sobrevivência sempre foi a de checar constantemente
a cauda do avião e permanecer de sobreaviso. O combate aéreo
era um trabalho difícil, requerendo braços e ombros fortes.
Os controles dos aviões não eram operados hidraulicamente
e, a 640 km/h, tornavam-se extremamente pesados. Sem pressurização
na cabine, voar em altitudes elevadas nos deixava exaustos. O mesmo acontecia
quando se puxava G em curvas fechadas e mergulhos acentuados. (Um piloto
que pesa 90 quilos passa a pesar 360 durante uma curva de quatro G). Após
alguns minutos de combate aéreo, as costas e braços doem
como se a gente estivesse carregando um piano escada acima. Ficamos suados
e respiramos pesadamente. As vezes, podíamos perceber a exaustão
dos alemães pela maneira como faziam as curvas e manobravam - outra
vantagem, se fôssemos mais fortes.
O combate aéreo exigia a soma total de nossas forças e expunha
nossas fraquezas. A alguns bons pilotos faltava uma boa visão; outros
ficavam excitados demais e perdiam a concentração ou a coragem;
alguns entravam em pânico quando se viam em aperto e faziam besteiras
que lhes custavam a vida. Os melhores pilotos eram também os mais
agressivos e isso era visível.
Aprendíamos rapidamente o que se podia e o que não se podia
fazer. Se o inimigo estava acima, não subíamos para encontrá-lo
porque, com isso, perdíamos muita velocidade. Numa situação
difícil, nunca nos apressávamos porque era isso que o inimigo
esperava. Era importante verificar sempre a traseira ao sair repentinamente
de uma nuvem:
podia-se estar pulando na frente de um
109. Evitávamos ficar trançando em torno dos cúmulos;
eles são como grandes blocos de pedra e é muito fácil
haver uma emboscada. E ficávamos particularmente de sobreaviso ao
voar sob altos e tênues cirrus. Os alemães podiam nos ver
através deles mas nós não podíamos enxergá-los
se olhássemos por baixo. Sempre que possível, escolhíamos
o momento certo para dar a volta num ataque frontal, a fim de não
sermos pegos pelas laterais e nos tornarmos um alvo direto. Também
tentávamos evitar ultrapassar um avião inimigo, o que nos
colocava perante sua mira; era como se derrubássemos a nós
mesmos. Certa vez, um de meus companheiros perguntou ao Coronel Spicer,
nosso comandante de grupo, o que fazer se fosse pego por uma grande força.
''Alegre-se, rapaz'', disse o velho comandante, "é para isso que
você está aqui."
Alguns dos nossos companheiros lutavam desse modo. No meio de um violento
combate, ouvi um deles dizer: ''Ei, tenho seis deles acossados há
duas horas. Subam até aqui e divirtam-se". Mas, uma outra vez, ouvi
o grito mais apavorante em meus fones de ouvido: — Oh, Deus, eles me pegaram.
Minha cabeça, minha maldita cabeça. Estou sangrando demais.
— Naquela noite, no clube dos oficiais, aquele que havia gritado apareceu
usando um Band-Aid, uma droga de Band-Aid grudado na nuca. Fora atingido
por um pedaço de Plexiglass. Assim, nosso esquadrão passava
por toda sorte de sentimentos. Se queríamos permanecer vivos, tínhamos
que ficar de olho nos cagões tanto quanto nos alemães. Eles
podiam ficar tão nervosos num combate que atirariam em qualquer
um, amigo ou inimigo. Lembro-me do quanto ficamos loucos da vida quando
o pior piloto da equipe se tornou o primeiro a registrar uma vitória
e ganhou uma garrafa de conhaque. Ele fazia parte de uma esquadrilha de
quatro que fora atacada por alguns alemães e tentou se arrastar
para trás de seu líder, descobrindo então que estava
na traseira de um 109 que atacava o líder. Fechou os olhos e puxou
o gatilho.
Havia sujeitos que ficavam tão apavorados por estar no mesmo céu
que os alemães que começavam a hiperventilar e perdiam os
sentidos; alguns cagavam nas calças. Alguns deles eram sinceros
a respeito de seu medo e pediam para ser substituídos no serviço
de combate. Havia outros que garganteavam durante os treinamentos, mas,
uma vez em combate, fugiam nos momentos críticos. E claro que, com
isso, fodiam com o resto. Também tínhamos os especialistas
em abortos, sujeitos que voavam conosco até que um bando de alemães
fosse avistado e, então, avisavam pelo rádio que estava voltando
para a base com problemas no motor. E ainda outros que disparavam uma rajada
e paravam de re-pente; ou observavam enquanto algum outro atacava um avião
inimigo e, em seguida, quando este começava a cair, mergulhavam
e disparavam uma rajada, tentando partilhar o crédito da vitória.
Um deles fez isto comigo. Acredite, ele nunca mais repetiu. Os piores eram
os alas que nos deixavam desprotegidos na hora do aperto. A tarefa do ala
era ficar como se estivesse grudado na traseira do líder, enquanto
que este se encarregava de atirar. O ala era o nosso seguro de vida e sua
confiabilidade, uma questão de vida ou morte para nós. Se
ele não correspondesse às nossas expectativas, não
havia uma segunda chance. Nós nos livrávamos deles rapidinho.
Eddie Simpson foi o ala de Andy até ser derrubado. Antes de voarem
juntos, Eddie disse a Andy: "Vamos para Londres para nos embebedarmos juntos.
Então, vou te seguir até o inferno''. Durante meu tempo de
serviço, tive cinco ou seis alas diferentes; alguns tinham melhor
visão ou mais disciplina do que os outros mas, já que nunca
fui derrubado quando voava como elemento ou líder do esquadrão,
acho que foram bastante competentes.
A intimidade especial entre os melhores de nós - Anderson, Bochkay,
Browning, O'Brien e eu - existia porque lutávamos da mesma maneira.
Principalmente Andy. Sobre o solo, ele era a pessoa mais gentil que já
conheci, mas, no céu, aqueles malditos alemães devem ter
pensado estar lutando contra Frankenstein ou o Lobisomem; Andy os derrubava,
mergulhando com eles até o túmulo, se necessário.
Eu também era assim. Sempre terminávamos o que havíamos
começado, fazíamos nossa tarefa. Estávamos lá
em cima para derrubar alemães e era isso exatamente o que fazíamos,
usando o máximo de nossa habilidade e de conhecimentos adquiridos
em treinamento. Éramos um grupo de rapazes inexperientes que cresceram
rapidamente. Andy chamava aquilo de faculdade de vida e morte. Não
recomendo a ida para a guerra como um modo de se testar um caráter
mas, quando o tempo de serviço terminou, sentíamos muito
seguros de nós mesmos e do que havíamos realizado. O que
quer que o futuro nos reservasse, conhecíamos nossa habilidade como
pilotos, nossa capacidade para controlar o stress e o perigo e nossa confiabilidade
em situações difíceis. Aquela era a diferença
entre pensar que somos bons e prová-lo.
General Chuck
Yeager, Voando nas Alturas (pags.77 a 82).
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